21/03/2012

Marta a prostituta privilegiada

O resto de uma luz permanecia triste e imóvel, como se fosse algo físico timidamente transparente atrás de uma cortina de nevoeiro, soltaram-se irritadas as linhas da estrada trespassadas pela borracha negra que ia escasseando pelo avanço da noite, assemelhando-se a uma caverna engolindo na ceia os cada vez mais raros dinossauros de chapa roncando na penumbra em alcatrão, chegou o cheiro a enxofre no arrepiar das horas transbordando maleitas de refractários, chegou o fardo que carrega dissabores na obrigação de amealhar migalhas de ar a cada noite, ao colo de Marta.
Alguém por trás, no ontem distante já fora menina, mas, desfigurada pela vida de rua, tornara-se prostituta de linha jarreta, contraiu o sorriso macilento atrás das olheiras borradas de cor púrpura invejando a concorrência e enciumada com cheiro a perversa, despediu-se do ácido estomacal que lhe irritava a garganta abanando uns safanões de má-língua, porém, acomodada com as amplas diferenças entre elas, desandou até novas paragens, onde a concorrência seria figuradamente mais equitativa, não sem antes, seguir com um resto de olhos riscados de iniquidade e chamejantes de cólera os saltos altos da outra, que bem mais favorecida de atributos, foi rompendo capas num vaivém de uma dezena de metros entre a árvore vestida e a esquina do asilo melancólico, que não passava de albergue sebento da comodidade incómoda, da condição humana, obviamente…
Para lá e para cá, aquela figura modelo peralta, lá foi arrastando oásis de fêmea parecendo quase pudica, teimando em menear feitiço esculpido de imagem mitiga ao incauto dos predadores.
Marta realmente era diferente por isso apinhava iras, algumas vozearias de quem tem muita dor de cotovelo, enquanto se desenhava na noite perfumando as estrelas numa profissão errata e devassa. Assemelhava-se a quem notasse como um anjo transgressor com olhar discreto e sensual, mas, esse olhar, impreciso na incompatibilidade entre o parecer e o ser, conquistava as cegueiras das criatura doando-lhe prazeres, repenicava-os das sombras transfigurava-os em machos polindo-lhe as arestas viciadas com luxúria, e noite após noite, as felicidades momentâneas deles, eram o escravizo da sinuosidade errante que se perpetua na tela de um pintor cadente… mas génio.
O chamariz pegaria como sempre pegava quando alguém se sinta perdido entre lascívias e descontentamento de alma, entre o mal de amor e a fuga às inutilidades das intempéries mentais, entre aquilo que se é, na distancia a percorrer atrás da diferença e a aproximação da mesma, entre as necessidades do corpo e a insatisfação do mesmo no ceio da indisposição frequente. O chamariz pegaria e pegou no momento em que um suposto cliente oculto na neblina se aproximou de Marta esculpindo anéis de fumo de um cigarro em trânsito entre os lábios e os dedos da mão enluvada.
Testemunha das noites mantinha-se a árvore segurando os ramos familiares, cobertos de penugem fina para que não se perdessem por aí, como outro tipo de ramos o iam fazendo numa melancolia triste, doce e assustada! Já era mau, o que dia após dia, noite após noite a mãe árvore presenciava, por isso protegia a sua ramagem aos malefícios da boémia. Dizia-se pelos ventrículos do desconhecimento que até podia ventar, mas quando Marta chegava, aquela estúpida árvore acalmava o vento e a trabuzana, servindo como protecção a um novo ramo de alcunha “a prostituta privilegiada.”
Nessa noite, como adivinhando o fado, a árvore tremia e até Marta olhou para ela no cimo da sua grande sobranceria e pensou dando voz ao pensamento: -Que se passa contigo estúpida arvore?
Como ela não lhe respondeu, abanou as sensuais ancas e virou-lhe o rosto a tempo de ver uma estrela cadente cair quase a seus pés, agitou-se ainda mais a árvore, Marta olhou-a de novo de baixo a cima, entre a passada que se vai e o retorno do chamariz da folhagem, arrepiou-se abespinhada com pele de galinha, mas nem um ai pequeno e muito menos um AI grande conseguiu elevar, nem conseguiu fazer com que toda a noite se tornasse dia, exemplificando um náufrago que usa a pistola de sinalização como último recurso num mar de ondas agitadas e temerárias, só que esta, a dita pistola encravou… num silêncio tudo idêntico ficou a voz de Marta, porque a lâmina calou-lhe o som antes de ter aclamado piedade, antes mesmo de perceber as linhas do seu futuro aniquilado, antes até de pedir à alma abrigo das desvirtudes, mesmo ali, naquele momento improrrogável transfiguraram-se todos os ramos da “estúpida” árvore entrando em alvoroço, fazendo fé à defesa da irmandade aflitos no ceio de uma tragédia a acontecer, mas nada puderam fazer para evitar a desventura. O cigarro deixou subir nas alturas o seu último anel de fumo e selou o peito meio nu de Marta carimbando-lhe o negrume da morte, a faca espelhou na noite o seu aspecto assassino e regressou para dentro do embrulho gotejando sangue, na sua queda os braços perdidos da diva abraçaram o tronco despido da árvore, tentando a protecção sem tempo, para uma dádiva de vida definitivamente perdida. As passadas do anti-vida desceram ao inferno da invisibilidade na ligeireza inocule da indiferença e decapitando monstruosidade perderam-se na meia-luz. No momento seguinte a árvore apelidada de tantas vezes estúpida recolheu Marta, sofrendo como madona no contra natura da perda de um filho.
Contam por essas bandas, que aquela “estúpida arvore” agora tem novas manias…chora à noite e de dia recusa-se a sombrear os acalorados, sabe-se, que por nenhuma outra prostituta acalmou o vento, fala-se pelas escotilhas nómadas, que um dia destes se deixa morrer pelas saudades de Marta, a prostituta privilegiada que dizem continuar a passear-se entre a árvore doente e a esquina do asilo melancólico e sebento, para luzir nas noites esculpida de imagem mitiga ao incauto dos predadores, enquanto perfuma as estrelas.
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