02/06/2008

Socorro




Eu não consigo parar de beber! Sinto que a realidade me tem passado ao lado. E hoje, que mal suporto o peso da consciência, em breves horas de lucidez, quero-vos pedir perdão pelo mal que vos vou causando, a vocês Ex. Mulher e Ex. Filhos.
A garganta inflama-se com as palavras quentes e sufocantes que teimam em não sair, que me vão queimando as células, rebentando-me esta débil cabeça, que cede a pressão no momento em que mais uns quantos copos se derramam goela abaixo, toldando o meu pensamento.
Tudo começou algures um dia bem distante, não me perguntem pois eu não me lembro, se terá sido num dia de fraqueza ou de euforia: vai mais um copo com um amigo, no outro dia mais dois copos com dois amigos, no terceiro dia, já são três os copos, até que as somas de copos transformou-se em multiplicação em que o show dos meus espectáculos, saturou os acompanhantes e eu um a um fui perdendo os amigos, mas como “bónus” ganhei; uma montanha de copos, vazios...
De novo vos digo, pelo que bebi não sei, mas sei por que hoje continuo a beber, para tentar esquecer todo o mal que vos fiz, tentar esquecer a dor da vossa ignorância apesar da vossa razão.
Ainda me lembro de quando éramos inseparáveis: com alguns problemas, algumas dificuldades, facilmente ultrapassáveis, era assim, tínhamos a força de uma verdadeira família: que chorava pouco e que ria muito, que caía por vezes, mas sempre se levantava e cada vez com mais vontade de se afirmar, porque o laço amoroso era forte e destemido.

Neste amontoado de cacos, penso no caos, que a minha vida se encontra e em tudo o que aprontei até hoje, também nesta violência que me cega e desfaz por completo a remota hipótese de remissão que eu poderia ter, culpo-me pela fragilidade e pelo álcool, que me embriaga e me deu esse direito de agredi-los física e psicologicamente, infernizar-lhes a vida de tal modo que, a vossa saturação acabou por me deixar só.

Quantas vezes já atirei a garrafa, cheia, meia, ou vazia contra a parede com toda a raiva, afirmando para mim próprio, que o pesadelo tinha que acabar e que era o último gole. Quantas vezes já pensei o suicídio, no entanto, ainda me lembro, quando a fraqueza perdia para a coragem e agora a coragem momentânea é apenas a fraqueza de um traste.

Hoje a balança avariou tal o peso das coisas negativas, que ganhei; num prato ponho os ganhos: algumas doenças sem solução, vícios sem fim, o desrespeito, o riso para o palhaço, que criou o seu próprio “circo” em que o espectáculo é cambalear pelas ruas, alvo de toda a troça.
No outro prato o que eu perdi: a casa, o carro, os amigos, o respeito e o principal, o que me enlouquece a cada segundo de lucidez, excepto quando tropeço e caio, adormecendo em qualquer parte, carregado de álcool, então acordo e de novo, o principal, aqueles que eu não soube defender e em vez disso: escorracei, pisei, subjuguei e desamei.

A ti Ex. Esposa e a vocês Ex. Filhos, desculpem-me por eu sempre ter pensado que os doentes eram vocês e não eu. Ao aceitar o meu erro quero que, refaçam as vossas vidas, se possível, esqueçam os traumas que vos causei, sejam muito felizes, porque eu amo-vos de todo o coração, mas como todo o coração é pouco, peço-vos de novo, perdão.

Completo agora esta carta, rascunhada há algum tempo atrás, mas que só hoje tem sentido e que envio, não pede pena, apenas quero dizer que estou há três meses sem beber, estou a tentar de novo os AA (Alcoólicos Anónimos), podem pensar que é mais uma tentativa falhada e talvez tenham razão, mas se existe no vosso peito uma ténue, morna, mas boa lembrança de mim, mais uma vez vos imploro, ajudem-me!!..





Ficção— de Jorge Vieira Cardoso

Realidade de alguém, anónimo “sem rosto”

7 comentários:

semrosto disse...

...CINCO ANOS DEPOIS...
hoje é o dia mais feliz da minha vida, tu, meu amor, perdoaste-me e ajudaste-me a "curar", os nossos queridos filhos conseguiram tirar nos meus mais fracos exemplos, a sua maior força, encarando a vida com a consciência que esta deve ser encarada, estão neste momento formados, eu por meu lado, ajudo os que agora são, como eu já outrora fui...

este poderia ser o final desta bela história, que sendo ficção, relata bem e com grande eloquência, o drama infelizmente vivido por enumeras famílias por esse mundo fora...
para ti, pela sensibilidade, e para "elas", pelo desespero, o meu mais sentido abraço!

Irene Ermida disse...

Uma confissão deste «tamanho» revela uma coragem desmedida e uma sensibilidade profunda. Será um primeiro passo para uma nova etapa da tua vida. Todos, uns mais do que outros, temos os nossos motivos para seguir este ou aquele caminho de que nem sempre nos orgulhamos. Caímos várias vezes na vida, mas o importante é a vontade de nos erguermos novamente. Este teu «desnudamento» simboliza, a meu ver, um querer virar a página. As palavras nem sempre dizem o que queremos perante os problemas que os outros enfrentam, mas deixo uma palavra de estímulo e de força para que consigas vencer essa dependência. O melhor ainda está por vir! Vive cada dia com a intensidade necessária para que o futuro seja cheio de esperança.

Carlos disse...

grande é a coragem de quem assume os seus (eventualmente ) erros.Há muita gente que teima em nunca reconhecer , o seu lado errante e por vezes doentio .ainda existem aqueles que pensam que a razão está sempre do seu lado e que os outros têm que ser marionetas ás suas mãos.
Realmente é uma nova partida e de certeza que um futuro mais brilhante, assim o espero.


Jorge , mais um momento grandioso , na tua escrita.


Abraço

abraço

Irene Ermida disse...

obrigada pela informação deixada no meu blogue... ainda bem que se trata de ficção, embora verosímil.

(Un)Hapiness disse...

olá...esta realidade do álcool magoa-me muito...é algo que não entendo, é algo que surge com desculpas e mais desculpas, é um vício egoista...não consigo perceber...:/


mas gostei do modo como escreveste!:)

kiss

Eu sei que vou te amar disse...

Jorge excelente texto! Principalmente pela coragem e descrição de quem assume uma fraqueza que por vários motivos nem sempre consegue.
Alem da profundidade de sentimentos transmitidos numa "carta aberta" leva-nos a perceber uma realidade sem julgamentos, o importante é alertar que situações como esta acontecem todos os dias, prevalece em nos ajudar e acarinhar quem precisa de um ombro amigo!

Jacinta Correia disse...

A vida é feita de obstáculos que arrasam, enfraquecem, desonram, reprimem, abandonam... e depois, há sempre aquela luz que nunca brilha por acaso, mas que num ocaso inspira, fortalece, levanta, ilumina a vida de alguém. A todos quantos possam estar a viver dramas deste tipo ou de qualquer outro, resta-me apenas dizer o lugar-comum - há em cada um a força necessária à vitória, enveredem pela sua descoberta!! Boa semana. (gostei do blog)

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